Sociedade X Rio

Cidade em oposição à natureza transforma fenômeno natural em problema social

Moradias ocupam área de alagação do Rio Acre (Foto Agência de Notícias do Acre - 2012)

Alagação em Rio Branco (AC) – 2012
(Foto Agência de Notícias do Acre)

Em 2012, o Estado do Acre sofreu a maior enchente de sua história: cerca de cem mil pessoas foram atingidas diretamente. O nível do Rio Acre chegou a 17,62m. O município de Brasiléia foi o mais afetado: a cidade teve 95% de sua área submersa e passou mais de 24 horas sem comunicação e energia elétrica. Apesar de trágico, o problema é totalmente previsível e pode ser evitado.

Em todo o mundo, a ocupação das cidades se inicia a partir dos rios. Na Amazônia não seria diferente. Os seringais que deram origem às cidades do Acre se situavam na beira, para escoar a borracha e facilitar a entrada de mantimentos. Na década de 1970, essas aglomerações urbanas incharam desordenadamente, devido a conflitos no campo. Em Rio Branco, muita gente ocupou desvalorizados terrenos alagadiços perto do Rio Acre. São locais que fazem parte do território do rio, de acordo com o regime normal de enchentes e vazantes.

Depois de décadas, as sucessivas enchentes levaram o poder público a propor a remoção de algumas famílias. No entanto, curiosamente, muitos não querem abandonar as áreas de risco. A equipe da ANAM entrevistou vários desses moradores em Rio Branco para saber por quê.

Nível dos rios amazônicos varia... (Foto Fabiana Chaves)

Variação no nível dos rios é natural…
(Foto Fabiana Chaves)

Neusa Batista dos Santos, 78, mora no bairro Taquari há 22 anos. Veio de Xapuri “em busca de um lugar na cidade, pois a vida no seringal estava muito difícil e encontrei aqui um lugar barato, na beira do rio, que é um pouco parecido com o lugar onde eu morava. Da rua até a beira tudo é meu, com isso posso criar porco e galinha sem perturbar ninguém. Esse barulho do motor das embarcações me faz lembrar o meu tempo de seringal.”

... Na Amazônia - centro de Rio Branco, 2012 (Foto Fabiana Chaves)

… Na Amazônia – centro de Rio Branco, 2012
(Foto Fabiana Chaves)

Neusa tenta reproduzir o ambiente no qual vivia em Xapuri. Os vizinhos da cidade, em sua maioria, são parentes que foram chegando aos poucos e formando suas famílias.

Mas outros fatores também evitam que essas famílias se mudem para as casas doadas pelo governo. Elas questionam se as novas residências possuem a mesma infraestrutura das atuais. Em Rio Branco, por exemplo, muitas áreas de risco situam-se no centro da cidade, o que torna esses locais atraentes.

“Não vou sair de um lugar que tem padaria, açougue e farmácia perto para ir para um lugar que não sei nem onde é. Aqui eu vou ao centro da cidade a pé, de muletas ou de ônibus. Quando quero comprar um pão, uma carne ou um quilo de açúcar é só atravessar a rua que encontro tudo aqui perto. As mães têm com quem deixar seus filhos. O governo quer mandar a gente para um lugar que nem parada de ônibus tem”, conta Maria Silvestre Pinho, de 53 anos. Maria veio da pequenina Santa Rosa do Purus, cidade mais remota do estado do Acre, e mora há 22 anos no bairro Taquari.

Existem também os casos mais extremos, daqueles que não tiveram escolha e viram suas casas sendo arrastadas pelas enchentes. Essas pessoas estão vivendo em apartamentos de um ou dois cômodos espalhados pelos bairros de Rio Branco. São os “hóspedes” de um programa governamental que paga o aluguel das famílias até 2014, ano em que está prevista a remoção para novas residências.

Sheila Sebastiana Ramirez, 44, conta que fez um empréstimo e comprou uma casa pequena no Bairro Seis de Agosto. Perdeu tudo na alagação de 2012 e hoje mora num apartamento de dois cômodos com mais quatro pessoas. “Independente de ser casa conjugada, terreno reduzido ou com pouca privacidade, eu quero é sair do sufoco, eu quero é ganhar minha casa”, diz.

Desenvolvimento insustentável agrava alagações

O pesquisador Evandro Ferreira, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa-AC) e do Parque Zoobotânico da Universidade Federal do Acre, aponta que as alagações se agravam devido ao desenvolvimento predatório que extermina as matas ciliares (matas situadas à beira dos rios e igarapés).

“A destruição das matas ciliares no Brasil tem ocorrido em razão do avanço das atividades agropecuárias, da urbanização e da construção de hidrelétricas, para citar apenas alguns fatores”, afirma o pesquisador. Ferreira diz que isso possibilita o aumento da produção agrícola, a expansão das cidades e a disponibilização de energia, mas alerta que a sociedade brasileira paga alto preço por esse crescimento.

Bairros inteiros situam-se em área de risco (Imagem e legenda: Evandro Ferreira)

Ruas inteiras situam-se em área de risco
(Imagem e legendas: Evandro Ferreira)

As matas ciliares desempenham importante papel hidrológico e ecológico. Sem a mata ciliar, a água da chuva escoa mais rápido e não penetra no solo para abastecer os lençóis freáticos. Isso prejudica o acesso à água para a população que depende de poços d’água. Afeta também as nascentes, córregos e, em última instância, os grandes cursos de água que abastecem as cidades.

A vegetação funciona ainda como uma proteção natural contra o assoreamento, pois, sem ela, a água da chuva carrega mais sedimentos para os rios. Com o tempo, o rio fica cada vez mais raso no período da seca. No período das águas, a ausência de mata ciliar facilita os transbordamentos, mesmo que a quantidade anual de chuvas não seja maior do que o normal. É o que ocorre no Rio Acre: de janeiro a março, alagação; de agosto a outubro, ameaça de falta d’água.

Alagação anual inunda floresta amazônica (Foto Fabiana Chaves)

Mata ciliar preservada na beira do Rio Acre
(Foto Fabiana Chaves)

 “A crise de água que os habitantes de Rio Branco vivem de forma recorrente durante as estiagens é reflexo direto da destruição da mata ciliar do Rio Acre”, explica Ferreira.

Estudos científicos realizados pelo Inpa-AC mostram que ao longo de todo o curso do Rio Acre, desde o Peru até Boca do Acre (AM), 28% das matas ciliares já foram eliminadas. No Estado do Acre, 32% das matas ciliares já foram destruídas. Em Rio Branco, a destruição é de 40% e, no município de Epitaciolândia (AC), já ultrapassou os 60%. As matas ciliares também funcionam como um filtro natural para a água que chega aos cursos de água, tornando-a mais limpa, o que favorece a fauna e flora aquática e facilita o tratamento para consumo humano.

Texto final: Fabiana Chaves e Maurício Bittencourt

Reportagem: Myrla Rodrigues e José Franco

Agradecimento especial ao pesquisador Evandro Ferreira, que cedeu valioso material de pesquisa sobre o Rio Acre (http://ambienteacreano.blogspot.com.br/)

No tempo da luta

Primeira professora do Seringal Cachoeira deu aula voluntariamente durante 2 anos

Antônia: “por amor à comunidade” (Foto Fabiana Chaves)

Antônia: “por amor à comunidade”
(Foto Fabiana Chaves)

A proposta de ouvir histórias de vida de moradores ou ex-moradores do Seringal Cachoeira busca revelar escolhas e princípios de personagens que participaram de momentos históricos na Amazônia. Com técnicas jornalísticas e de História Oral, a entrevista abaixo foi transcrita para reproduzir não somente fatos, mas também a linguagem e a forma narrativa, com as expressões e características discursivas peculiares da entrevistada. Neste fragmento, aparece Antônia Vieira, 64 anos, primeira professora do Seringal Cachoeira, que nos impressionou por seu carinho em relação à comunidade “do Cachoeira” e por sua coragem frente aos empates. Entrevistamos a professora Antônia, no município de Xapuri (AC), no dia 20 de outubro de 2012.

Antônia Vieira – Eu nasci no Iaco [rio do estado do Acre, afluente do Purus]. Fui batizada em Sena Madureira (AC). Aí com sete anos eu cheguei aqui em Xapuri e estudei as quatro primeiras séries. No final dos meus quatorze anos eu fui passar as férias na casa do meu pai, lá no Cachoeira e arranjei um rapaz. Eu cheguei no Cachoeira com 15 anos de idade, me casei, formei família e trabalhava na roça. E aí surgiu um trabalho de professora. Porque não tinha professor lá na época. Através de Chico Mendes, Raimundo de Barros, eles fizeram reunião pra criar uma escola. Aí o pessoal: “ah, bora escolher a Antônia, porque nós precisamos de alguém pra dar aula”. Que lá no Cachoeira ninguém sabia nem ler nem escrever. Não tinha escola. Na época da reunião, eu até estava com malária, mas mesmo assim, colocaram meu nome lá, aí eu aceitei. Aí ficou. Fiquei fazendo cursos do Projeto Seringueiro e comecei a trabalhar, só por amor à comunidade mesmo, que eu não tinha contrato não.

Agência Ambiental de Notícias da Amazônia (Anam) A senhora escolheu um local para dar aula?

Antônia Vieira – Foi. Escolhi um local. Era longe. Ensinava os alunos analfabetos. Na época, pegava na mão pra ensinar, né, hoje não se pega mais. Aí fazia os cursos e dava aula, mas sem ganhar nada.

Anam E continuou trabalhando na roça depois que começou a dar aulas?

Antônia Vieira – Eu trabalhava na roça no sábado. Ajudava meu marido. Aí, de segunda a sexta eu trabalhava nas aulas. Trabalhei por uns dois anos sem ganhar nada; só depois que eu fui contratada.

Anam Pela prefeitura?

Antônia Vieira – Pelo governo. Aí melhorou um pouco né (risos), foi melhorando… Dava aula e em julho eu vinha estudar pelo Projeto Seringueiro, vinha fazer curso. Aí ia pra lá, trabalhava. Em dezembro, janeiro e fevereiro eu vinha estudar. Aí passei uns cinco anos assim. Fiz o primeiro grau parcelado assim. Em uns quatro anos eu fiz o primeiro e o segundo graus. Aí eu completei meu segundo grau e trabalhava na escola da comunidade. Trabalhava na escola e era merendeira, professora e servente, comboieira. Ainda tirava lenha pra fazer a merenda da semana toda, né. Todo sábado eu fazia isso. Era muito difícil. Era na lenha mesmo, era no fogão de lenha. Eu pegava muito do meu trocadinho pra pagar condução pra levar a merenda. Na época tinha um prefeito que não ajudava. Uma vez nós precisamos de cinco pessoas pra levar a merenda, e teve uma briga desse prefeito com cinco professores, um deles era o [ex-governador] Binho. O Binho na época era o meu coordenador e o prefeito era o Wanderley Viana e teve uma briga com o Binho. Era difícil… Mas aí… Bem… Aí eu continuei dando aula.

Anam Depois estudou pedagogia…

Antônia Vieira – Depois de muito tempo eu fiz pedagogia sim e fiz minha pós-graduação em Educação Ambiental. É o que o Genivan também está fazendo, o meu neto.

Antônia: pós-graduação em educação ambiental (Foto Fabiana Chaves)

Antônia: pós em educação ambiental
(Foto Fabiana Chaves)

Anam Consegue fazer trabalho ambiental hoje em dia?

Antônia Vieira – Consigo. Todo evento que tem eu estou lá com o meu cartaz. A diretora até diz “a senhora é uma poetisa”. E nas aulas também.

Anam E a pós-graduação, acabou quando?

Antônia Vieira – Em… 90… 92, parece.

Anam – A senhora ainda é professora?

Antônia Vieira – É, trabalho de manhã agora, dando aula pra adulto.

A militante

Anam Ouvimos dizer que a senhora além de professora da comunidade, também participou dos empates.

Antônia Vieira – Participei. Chico Mendes me convidou pra ir a um empate no Nova Esperança. Eu estava numa reunião do evangelho quando ele mandou um bilhete pra eu ir pra esse empate. E eu… Tive que ir, porque na época eu era delegada do sindicato e não podia recuar, né. Na época que eu fui escolhida pra delegada, teve um senhor que disse “devemos escolher a pessoa que, na hora do ‘pega pra capar’, não se esconda por detrás dos tocos”. Então eu me lembrei dessa frase e disse: “eu tenho que ir pro empate”. Aí fui.

Anam Como foi esse empate?

Antônia Vieira – Sei que fui chegando lá e já era de noite. Quando foi de manhã reunimos todos os companheiros e fomos para o empate. Aí, lá na fazenda, na estrada do Nova Esperança já tinha gente esperando, e nós fomos presos. Eram 80 pessoas, e foram todas presas, porque na hora que nós dissemos que íamos enfrentar mesmo, eles disseram: “só o Raimundo Barros… E as outras pessoas podem ir embora. Esses aqui que são os ditadores. Pode ir embora que esses aqui que vão presos”. Na hora que eles disseram isso nós enfrentamos eles. Tinha mulher com criança… Eles colocaram as metralhadoras tudo em cima de nós, pra atirar mesmo. Aí, nós demos as mãos e começamos a cantar o hino nacional… Aí eles baixaram as armas. Aí disseram “mas não tem jeito não, vão presos”. Fomos todos presos. Um conseguiu correr. Quando ele correu botaram a arma nele, aí dissemos “não, que ele é mouco, nem adianta gritar… Que ele é mouco”. Esse que escapou, no outro dia levou mais 40. Então aí concluíram 112 seringueiros presos. Fomos 112. Daí começou a luta, né, a cassação da cabeça do Chico. Quando mataram o Chico, aí teve o negócio das reservas extrativistas, mas aí eu já não tava mais lá, eu fiquei viúva e vim morar aqui. Eu estava sempre acompanhando as lutas do pessoal da reserva, foi um sufoco mesmo pra conseguir isso aí. É esforçado, né, pra gente reunir o povo que não é muito consciente, pra conseguir a reserva e cuidar do meio ambiente, porque antes, o pessoal achava que o meio ambiente era o Chico. Vê como é que tá o nosso planeta hoje, né?

Anam E a ideia do hino? De onde surgiu a ideia de vocês cantarem o hino como forma de protesto, de defesa?

Antônia Vieira – Assim que eles colocaram a metralhadora em cima da gente, a gente começou a cantar. Surgiu assim do nada. Rapidinho, assim. Foi o melhor meio que a gente encontrou para se defender, porque se eles não respeitassem cantando o hino nacional, né…

Antônia: hino nacional para enfrentar polícia (Foto Fabiana Chaves)

Antônia: hino nacional durante o empate
(Foto Fabiana Chaves)

Anam Como foi essa ameaça com armas?

Antônia Vieira – Eu estava preparada mesmo. Eu tenho uma filha que, na época, tinha 11 anos. Eu falei pra ela “minha filha, você fique aqui na casa do Senhor Nogueira, porque nós vamos enfrentar a polícia e eu não sei… Eu vou porque toda luta eu tenho que ir e você é novinha. Se eu morrer seu pai vem lhe buscar…” Mas aí ela disse “não, se a mãe morrer eu morro também.”

Anam Seu marido não foi aos empates?

Antônia Vieira – O meu marido não. Eu não deixava ir porque ele tinha epilepsia e se ele tivesse um ataque e desse um grito a gente podia ser descoberto. Ele não ia nem nos empates que tinha no Cachoeira.

Anam Qual era a crença que te movia para lutar contra a injustiça? De onde surgia essa coragem?

Antônia Vieira – Tinha gente que estava lá até tomando maracujina (risos). O jeito foi fazer empates pra não deixar ninguém tomar nossa terra. Isso durou muito tempo.

Eu tinha a minha família lá, desde os 15 anos que eu me casei e fui morar lá, e o meu objetivo era continuar a morar lá. Como hoje nós ganhamos o Cachoeira eu moro aqui [Xapuri], mas eu sou baluarte de lá. Sempre eu estou lá nos eventos, participando de tudo. Eu sempre tento ajudar da melhor maneira possível, e hoje você vê: todos os meus filhos moram lá. Só tem um, que é o motorista da prefeitura. Mas os outros todos moram lá.

Eu não queria sair de lá, mas aí eu fiquei viúva e arranjei um outro casamento, os meninos não queriam aceitar né, aí eu construí aqui na cidade. Ficou tudo bem, mas eu ainda continuo na luta, ainda sou filiada do sindicato dos trabalhadores e dos professores também. Sou filiada em dois sindicatos. E a luta continua.

Anam Como é que vocês perceberam que entrada daqueles fazendeiros seria um problema tão grande?

Antônia Vieira – É porque…  Vocês sabem aquele ditado? “Não deixe o tatu entrar, por que se o tatu entrar no buraco é difícil ele sair.” O fazendeiro também, se ele entrar é difícil ele sair, se ele tivesse entrado no Cachoeira, hoje não teria mais ninguém de nós lá. Os vizinhos dele que tivessem medo, ele ia dando jeito e comprando as colocações devagarzinho de um a um, não é? Eles estariam com o Cachoeira quase todo. E então o negócio foi enfrentar para que eles não entrassem, por que se eles entrassem era difícil de colocar para fora.

Anam Hoje um enfrentamento desses seria difícil de fazer?

Antônia Vieira – Seria sim. Aqueles que tinham menos coragem a gente tinha que enfrentar e dar coragem para eles, dizia “olha, você vai tem que ter coragem porque nós temos que trabalhar em prol disso aqui, porque se nós perdermos isso aqui, como é que vocês vão viver?” Eu ainda tinha uma profissão, mas eu pensava em quem não tinha. Tem que pensar nos outros.

Anam Na época dos empates qual era a sua idade?

Antônia Vieira – Na época…. Uns 40. Nada, eu ainda não tinha 40 não. Quando eu fiquei viúva eu tinha 42. Eu tinha trinta e poucos anos nessa época. Era pau de dá em doido, eu caçava, eu fazia tudo (risos). Meu marido era doente e eu tinha que ajudar.

Anam Caçava? Com espingarda e tudo?

Antônia Vieira – Era! Com espingarda. Eu cortava seringa, eu comprei esse terreninho aqui a custa de uma borracha que eu vendi. Eu vendi para o seu Manoel Ribeiro, o homem que a primeira escolinha era na colocação dele. Ele comprava a borracha, aí eu fiz e vendi pra ele.

Mulher (Foto Fabiana Chaves)

Antônia: coragem na luta pela terra
(Foto Fabiana Chaves)

Anam Qual o resultado dos empates? O povo do Cachoeira foi vitorioso?

Antônia Vieira – Deu vitória. Foi bem difícil, mas foi muita vitória. Hoje nós temos um lugarzinho: as terras de lá, nosso lugar, tudo mundo em paz e trabalhando. Agora a gente luta para que esse pessoal se conscientize mais sobre o ambiente.

Anam Qual a sua opinião sobre a geração mais jovem?

Antônia Vieira – Pois é, os mais jovens precisam se unir na batalha, na luta sobre esse negócio das reservas lá e tudo. Mesmo trabalhando com o manejo, às vezes, ainda tem manejador que tira madeira clandestina. A Naza [atual presidente do Sindicato do Seringal Cachoeira] está lutando muito contra isso. Já fomos até para Rio Branco debater sobre isso.

Anam Após o assassinato do Chico Mendes a luta se enfraqueceu?

Antônia Vieira – Numa parte ela fortaleceu, em outra parte eu vi fracasso, porque muita gente que era do lado dele [Chico Mendes] só se beneficiou financeiramente. Porque se muita gente que era do lado dele tivesse continuado, a própria esposa dele tivesse continuado, a luta estava sendo melhor. Mas, a gente vê que a própria família, muitos deles são contra.

Anam Como foi a participação das mulheres? Havia muitas mulheres com vocês lá?

Antônia Vieira – Na época tinha! Na época as mulheres eram animadas, hoje em dia eu não sei o que esta acontecendo que as mulheres não estão se unindo mais. De primeiro a gente fazia encontro de mulheres, fomos para Rio Branco e tinha o movimento das mulheres, agora as mulheres parecem que não estão querendo muito mais se unir. Acho que é falta do incentivo de uma pessoa.

Anam Um líder?

Antônia Vieira – É. Um líder de frente pra organizar. Tem a Naza, mas ela tem tanta coisa para fazer que não sabe em quantas se vira.

Anam  Hoje, qual o seu sentimento sobre a luta do Seringal Cachoeira?

Antônia Vieira – Eu me sinto muito feliz e honrada, porque eu tinha uma liderança forte lá. Quando eu saí de lá os vizinhos ficaram reclamando, chorando, porque eu saí, né. Mas eu tinha que sair. Quando eu trabalhava lá, eu trabalhava forte, ajudava em tudo: eu era monitora, eu era delegada do sindicato, participava dos empates, era professora, eu era tudo… Pau pra toda obra (risos).

O amor por Chico

Anam A senhora teve muito contato com Chico Mendes?

Antônia Vieira Tive sim. Ele tinha 19 anos quando eu cheguei lá. Eu tinha 15. Tivemos um namorico [pausa]. Ele mandou um bilhete para mim perguntando se eu tinha coragem de fugir com ele no dia em que fosse casar, aí eu disse que não! (risos)

Anam Então quer dizer que no dia do casório ele queria te roubar (risos)?

Antônia Vieira – Queria sim, mas eu disse que não ia dar…

Anam E a senhora gostava do Chico?

Antônia Vieira – [D. Antônia pensa, se “esconde” atrás de bolsinha que tinha nas mãos] O amor da minha vida! [Emoção] Um amor de infância, quase. Eu casei nova…

Anam Quantos anos viveu com seu marido?

Antônia Vieira – Vinte e sete anos.

Anam O pessoal do Seringal Cachoeira sabe dessa história?

Antônia Vieira – Sabe! Sabe… (risos). O Chico estava noivo de uma moça há sete anos, por nome Maria, e aí quando eu fiquei viúva, ele disse que ainda tinha esperança, que se eu quisesse ele, que ele gostaria de casar comigo. Aí eu disse que não, que ele podia ir ser feliz. Aí ele foi…  Ele também tinha uma namorada na estrada, na estrada velha, que é essa que ele casou com ela depois de um tempo. E deixou a pobre da Maria chupando dedo. Essa da estrada foi a primeira esposa dele. Aí depois ele casou com a Ilzamar. Mas ela não gostava muito de mim não. (risos)

Se eu tivesse casado com ele, eu ia ser da luta junto com ele. Do jeito que ele lutava, eu lutava também. E ela não era da luta, ela não era do lado dele.  Até quiseram levar ele para os Estados Unidos depois, porque ele estava ameaçado de morte, mas ele disse que morria pelo povo e não foi pra lá. Eu depois fiquei viúva de novo, eu ia ficar viúva sempre, não tinha jeito.

Eu tenho medo de esse povo, essa família que matou o Chico entrar no poder aqui em Xapuri de novo. Qualquer briguinha de bar eles aproveitam pra matar algum que já estavam querendo matar. A luta não pode parar, as pessoas estão se esquecendo disso.

Texto final: Fabiana Chaves

Edição: Fabiana Chaves e Maurício Bittencourt

Reportagem: Cecília Jácome e Cristina Souza

O extrativismo sobrevive

Produtos da floresta mantêm comunidade tradicional no Acre

Atividade se manteve durante décadas (Foto Fabiana Chaves)

Extração de látex resiste há décadas
(Foto Fabiana Chaves)

Após o declínio da economia da borracha os seringais da Amazônia foram abandonados ou vendidos a preços baixos. Seringueiros e seringalistas ficaram sem perspectiva econômica e tiveram de deixar a zona rural da Amazônia. Durante as décadas de 1970 e 1980, a região mudou de perfil, recebendo fazendeiros e camponeses do sul do país. Contudo, alguns seringais sobreviveram extraindo látex, atividade que permanece até hoje.

Várias formas de administrar os seringais surgiram entre as décadas de 1940 e 1980. Algumas pessoas que viviam da extração da borracha se organizaram em pequenos coletivos para continuar trabalhando sem patrão. Apesar dos preços baixos e da dificuldade em comercializar o látex, para alguns pesquisadores a situação dos trabalhadores melhorou muito após o final do último surto econômico da borracha. Os extrativistas adquiriram autonomia para o uso da terra e puderam ter seu próprio ritmo de trabalho. Esse foi o caso do Seringal Cachoeira, localizado no município de Xapuri (AC).

Seringueiros começaram a trabalhar sem patrão (Foto Fabiana Chaves)

Seringueiros começaram a trabalhar sem patrão
(Foto Fabiana Chaves)

Segundo os moradores da comunidade, o seringalista local (dono do seringal) havia deixado de explorar o látex, mas não impedia que os seringueiros o fizessem. Porém, devido à pouca lucratividade, as terras foram vendidas a um fazendeiro que tinha em vista transformar a área em pasto. Este tipo de política foi amplamente difundida pelo governo federal para incentivar a ocupação da região após o declínio da exploração de borracha.

Desse período até a transformação do Seringal Cachoeira em parte integrante do Projeto de Assentamento Agroextrativista Chico Mendes (PAE Chico Mendes), em 1989, houve muita disputa pela posse da terra. Foi a época dos “empates”, manifestações em que os seringueiros e suas famílias impediam o desmatamento ao se colocarem em frente às máquinas que promoviam as derrubadas. Chico Mendes foi uma das lideranças desse movimento.

Sebastião: maioria das famílias é de seringueiro  (Foto Meyre Campos)

Sebastião: maioria das famílias é de seringueiro
(Foto Meyre Campos)

Hoje, no Seringal Cachoeira vivem cerca de 90 famílias. A base de geração de renda da comunidade são as atividades extrativistas. A maioria das famílias sobrevive da extração manejada de madeira e de látex, mas também da coleta de açaí, do patoá, de bacaba e de castanha. Atualmente, o Seringal Cachoeira é o maior produtor de borracha da região, com cerca de 3 mil litros de látex por semana. Toda a produção da comunidade é vendida para a fábrica de preservativos masculinos Natex, empresa estatal situada em Xapuri.

Sebastião Mendes foi extrativista por quatro décadas. Hoje, aos 66 anos, ele não pode mais trabalhar, mas fica feliz em saber que o ofício de seringueiro continua forte entre as novas gerações: “tem gente que acha que o trabalho de tirar borracha não existe mais, que é coisa antiga. Besteira! Aqui a maioria das famílias é de seringueiro. Tem muito mais incentivo hoje, os preços de borracha estão melhores. Tem muito moleque aí que já sabe tirar látex e trabalha nisso”.

BARBOSA: “melhorou muito” (Foto Meyre Campos)

Barbosa: “melhorou muito”
(Foto Meyre Campos)

Francisco Oliveira Barbosa é um dos mais novos seringueiros do Cachoeira. Com 21 anos, opta por trabalhar no mesmo ofício que os pais e os avós. Segundo ele, além de gostar do que faz, hoje em dia os preços da borracha estão melhores, permitindo que ele possa se manter na comunidade: “minha renda é em média uns 800 reais por mês. Em vista do que os mais antigos falam, melhorou muito. Agora a gente recebe quinzenalmente, o que facilita as compras. Antes o salário vinha por semana, aí tinha que ir até a cidade um monte de vezes pra ir comprando as coisas os poucos”.

De acordo com Nazaré Vieira Mendes, presidente da Associação dos Moradores e Produtores do PAE Chico Mendes, cada família chega a receber por ano em torno de seis mil reais com a extração da seringa (borracha). “Pode parecer pouco, mas há dez anos era apenas uns 900 reais por ano”, diz.  Há dez anos, o preço da borracha era de setenta centavos o quilo e hoje chega a sete reais e oitenta centavos, devido aos subsídios oferecidos pelos governos federal e estadual.

Fábrica compra todo o látex do seringal (Foto Fabiana Chaves)

Natex: fábrica compra todo o látex do seringal
(Foto Fabiana Chaves)

Sebastião Mendes afirma que depois da implantação da Natex, muitas coisas mudaram. “O preço melhorou e o incentivo também, pois agora a fábrica compra o leite sem precisar que o seringueiro realize a defumação, beneficiando com menos serviço e pagando mais. Hoje temos uma associação e trabalhamos por conta própria”, salienta.

A extração de borracha, apesar de ser a atividade mais praticada na comunidade do Cachoeira, não é a única fonte de renda. Existem as demais atividades extrativistas e, recentemente, os trabalhos ligados ao turismo, que complementam o orçamento da população (veja abaixo reportagens sobre pousada e circuito de arborismo no PAE Chico Mendes).

A organização do seringal

Nilson Mendes trabalhou muitos anos como seringueiro e hoje é guia turístico da comunidade, além de ser uma das lideranças locais. Ele explica sobre a peculiar organização do seringal: “um seringal é uma área de terra bem grande, do tamanho de uma fazenda. Só que no seringal a floresta é preservada, pois é dela que vem a renda do seringueiro. Essa área toda é dividida em várias colocações, que são pedaços de terra menores que ficam na responsabilidade de uma família de seringueiros. É esta família que tira toda a borracha daquele pedaço”.

Cada colocação possui de três a seis estradas de seringa (as estradas são estreitas, lembrando uma trilha). A casa do extrativista e as plantações de subsistência ficam no centro, rodeadas pela floresta. As estradas são trilhas circulares de seringueiras, que começam e terminam no mesmo ponto. Cada estrada tem em média 160 seringueiras.

Segundo Francisco Barbosa, cada estrada de seringa tem um nome para ajudar na localização do seringueiro. “Todas as estradas tem um nome, porque muitas vezes o seringueiro sai para cortar sozinho, e às vezes é preciso ir até onde a pessoa está. Ou então, quando dá a hora da pessoa chegar e ela não chega, vamos até a estrada procurá-la”, afirma.

Algumas estradas são interligadas em forma de zigue-zague e outras por meio de varadouros, caminhos que ligam uma estrada a outra. Geralmente uma ou duas das estradas de seringa levam à casa do seringueiro, no centro da colocação, permitindo ao seringueiro ir até sua casa almoçar. “Mas isso é difícil, pois na maioria das vezes o seringueiro faz suas refeições dentro da mata, no meio da varação ou no final da estrada”, conta Nilson Mendes.

Borracha: seringais são divididos em colocações (Foto Fabiana Chaves)

Borracha: seringais são divididos em colocações
(Foto Fabiana Chaves)

Desde a época dos ciclos da borracha até hoje, o método de extração e os instrumentos de trabalho permanecem os mesmos. O trabalho é dividido em dois turnos: um de extração e outro de recolhimento. “Começa-se pela perna direita… A perna direita é a estrada por onde se inicia a extração e vai acompanhando o caminho de zigue-zague das seringueiras na floresta. Nessa parte do trabalho, são feitos os sulcos nos troncos. Ao final, faz-se o rodo, ou seja, o retorno, voltando pela perna esquerda e recolhendo o leite da produção. A perna esquerda é um caminho mais curto pra buscar a seringa”, explica Sebastião.

Segundo Nilson, uma seringueira precisa ter pelo menos 20 anos para começar a produzir látex e, se bem cuidada, produz seringa pelo resto de sua vida. Uma das formas de manter a vida útil da árvore é a realização uma espécie de rodízio semanal na utilização das seringueiras.

Em janeiro, coleta de castanha domina a economia local (Foto Fabiana Chaves)

Em janeiro, castanha domina a economia local
(Foto Fabiana Chaves)

Anualmente, de agosto a outubro, a seringueira perde suas folhas e produz frutos para a proliferação da espécie, um processo natural. “Neste período o leite sofre uma coagulação mais rápida e nós paramos de tirar, pra respeitar o tempo da árvore”, diz Nilson. Outro momento de paralisação das atividades é na segunda quinzena de janeiro, quando a coleta de castanha passa a ser o carro chefe da economia local.

“Todas as atividades que praticamos aqui são em harmonia com a floresta e os bichos. Quando o seringueiro trabalha na mata, ele é parte dessa mata e convive bem com ela. Ele tem que conhecer as plantas, os bichos. Os bichos também passam a conhecer ele. Esse trabalho ajuda a preservar a floresta, como dizia o Chico”, ressalta Nilson.

Texto final: Fabiana Chaves

Edição: Fabiana Chaves e Maurício Bittencourt

Reportagem: Meyre Campos

Na copa das árvores

Maior circuito de arborismo da Amazônia situa-se em comunidade extrativista

A 25 metros de altura  (Foto Fabiana Chaves)

A 25 metros de altura
(Foto Fabiana Chaves)

No alto de uma castanheira centenária começa o Circuito de Aventura Chico Mendes, situado no Assentamento Agroextrativista Chico Mendes (PAE Chico Mendes/INCRA), em Xapuri (AC). Com mais de 600 metros de extensão a 25 metros de altura, trata-se do maior e mais alto circuito de arborismo da Amazônia.

Construído em uma área de sete hectares, o circuito conta com passeio ciclístico, ascensão em árvores, rapel, arborismo acrobático, arborismo contemplativo e tirolesa. Todo o trabalho de apoio é realizado por moradores que receberam treinamento e trabalham como instrutores. A atividade soma-se aos serviços ofertados pela Pousada Ecológica Seringal Cachoeira, localizada num dos seringais que integram o PAE (veja reportagem abaixo).

“Aqui nós não precisamos de muito, a floresta é nosso ganha-pão, se a gente deixasse derrubar a floresta, vendesse nossas terras, a gente viveria de quê? Essas novidades todas de turismo também só existem porque a floresta está aqui”, afirma Nilson Mendes, um dos líderes comunitários do Seringal Cachoeira.

Equipe de instrutores é formada por moradores (Foto Glauco Capper)

Equipe de instrutores é formada por moradores
(Foto Glauco Capper)

Parceria

O projeto do Circuito de Aventura surgiu por meio de uma parceria entre a comunidade e o governo do estado do Acre. “Nós já tínhamos a pousada funcionando, as trilhas, mas ainda faltava uma atração maior, algo que fosse um diferencial e que pudesse gerar mais renda para a comunidade, sem devastar”, conta Fernanda Mendes, administradora da Pousada Ecológica Seringal Cachoeira.

Em 2010, o projeto começou a ser pautado nas reuniões da secretaria estadual de turismo (Setul). Daí em diante, firmaram-se diversas parcerias para que a construção do circuito saísse do papel. O primeiro passo foi pedir permissão ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), responsável pelo assentamento. Foram realizadas várias reuniões entre a comunidade e o INCRA, e, após o consentimento unânime da população local, as obras foram iniciadas. Outra parceria importante foi com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que liberou 100 mil reais para a execução do projeto.

Com as verbas e iniciativas firmadas, faltava definir onde o circuito seria construído. Por meio de um acordo, dois moradores cederam parte de suas terras para a implementação da obra. “Era para melhorar a renda das pessoas aqui”, afirma Duda Mendes, um dos cedentes. Em parceria com a Setul, foi contratada a empresa Ecoventure, de Campinas (SP), para a montagem da estrutura do circuito.

Estrutura foi montada sem prejudicar as árvores (Foto Glauco Capper)

Estrutura foi montada sem prejudicar árvores
(Foto Glauco Capper)

Após a realização de um longo estudo da área por uma equipe técnica formada por engenheiros, geógrafos e integrantes da Ecoventure, o local de construção do circuito de aventura foi mapeado. Elaborou-se um projeto para a utilização das árvores de modo a não prejudicá-las. Mesmo com as fortes chuvas do final do ano de 2011 e início de 2012 foi possível terminar a obra em fevereiro de 2012. A inauguração ocorreu em 31 de março do mesmo ano.

Foram mais de 400 mil reais investidos para colocar o circuito em pleno funcionamento, desde a parte técnica e estrutural até o treinamento de pessoal. Inaugurava-se o maior e mais alto circuito de arborismo da Amazônia.

O diferencial do Circuito de Aventura Chico Mendes é a forma como foi elaborada sua construção, primando por não prejudicar as árvores. Nenhum dos cabos de aço usados como base para as plataformas entra em contato direto com as árvores. Os troncos são protegidos por calços de madeira. Nenhuma árvore foi furada, o que poderia prejudicar seu crescimento. Ao invés de furos, foram utilizados parafusos que podem sempre ser reajustados.

Região quase virou pasto na década de 1980 (Foto Glauco Capper)

Região quase virou pasto na década de 1980
(Foto Glauco Capper)

No período de realização da obra, 20 pessoas se interessaram em realizar capacitação para se tornarem instrutores do circuito. O curso teve duração de 120 horas, incluindo aulas práticas e teóricas de segurança, primeiros socorros e resgates. Valdeilto Pereira da Silva, 32, participou desse grupo e afirma que “infelizmente nem todos conseguiram concluir o treinamento, pois uns ficaram com muito medo de altura e outros tiveram que sair da comunidade por motivos de estudo”. Hoje, o circuito possui 10 instrutores.

Valdeilto, que nasceu no seringal, trabalha no circuito desde que foi inaugurado. O instrutor conta que trabalhou no manejo por cerca de cinco anos, e que não sente saudade: “hoje estou satisfeito e não penso em me mudar para a cidade, o que antes eu pensava. Sou instrutor geralmente só nos finais de semana e posso fazer outras coisas aqui dentro durante a semana”.

Renê Mendes Vieira, 19, também é instrutor. Antes, ajudava o pai na plantação e na coleta de castanha e açaí. “Gosto do trabalho no circuito porque não preciso sair da comunidade.” Everton Paiva, coordenador do circuito, é natural de Rio Branco, capital do Acre. “Fiz o curso de instrutor e gosto do trabalho. Não penso em voltar para Rio Branco, aqui a vida é bem melhor”, conta.

Segurança

Todas as atividades são realizadas com equipamentos de segurança e acompanhamento dos instrutores. Os turistas passam por um treinamento ainda no solo. Nele, os monitores ensinam como utilizar os cabos para se mover entre os obstáculos e checam cadeirinha, mosquetão, capacete e luva. “Nós também pedimos que as pessoas preencham uma ficha antes de ir. Perguntamos se tem problemas cardíacos ou respiratórios, por exemplo”, relata Paiva.

Turistas recebem treinamento no solo (Foto Glauco Capper)

Turistas recebem treinamento no solo
(Foto Glauco Capper)

O circuito passa por manutenções periódicas de segurança: vistorias diárias, inspeção quinzenal e ajustes bimestrais por técnicos da Ecoventure. De seis em seis meses o circuito para, a fim de realizar uma manutenção geral.

Depois da inauguração do Circuito de Aventura Chico Mendes, a procura pelo Seringal Cachoeira aumentou. “Muita gente se sentiu atraída por conta do circuito. Temos recebido grupos grandes e todos perguntam pelo arborismo”, conta Fernanda Mendes.

Uma turma de 40 alunos do Curso de Turismo da Universidade Andina de Cuzco visitou a comunidade. Eles vieram por meio de um projeto do professor Leone Fuentes, com a proposta de conhecer rotas turísticas diferenciadas. O professor afirmou que o Acre não poderia ficar fora dos roteiros, pois “aqui tem um tipo de desenvolvimento muito específico. É o verdadeiro desenvolvimento sustentável através do turismo”. Gonzalo Aedo, um de seus alunos, ficou fascinado com o arborismo e encantado com a estrutura do seringal: “não se encontra isso em outro lugar”.

Texto final: Fabiana Chaves

Edição: Fabiana Chaves e Maurício Bittencourt

Reportagem: Glauco Capper e Jeniffer Bruschi

Turismo no seringal

Pousada gera atividade turística comunitária em área onde viveu Chico Mendes

Pousada Seringal Cachoeira em Xapuri (AC) Foto: Fabiana Chaves

Pousada Seringal Cachoeira em Xapuri (AC)
(Foto Fabiana Chaves)

O turismo pode se transformar numa das principais alternativas de atividade econômica para as comunidades da Amazônia. Segundo a Organização Mundial de Turismo (OMT), os roteiros de turismo ecológico e cultural estão entre os que mais crescem no mundo, transformando pequenas localidades em receptoras de grande número de visitantes.

A Pousada Seringal Cachoeira, na área rural do município de Xapuri (AC), promove várias ações ligadas ao turismo ecológico. As atividades geram renda e preservam a identidade sociocultural da comunidade. Trata-se do local em que nasceu e viveu Chico Mendes. Grande parte de sua família ainda mora ali.

O Cachoeira foi território de disputa por terra nas décadas de 1970 e 1980. No local, ocorreram os primeiros “empates”, ato político em que os seringueiros e suas famílias se colocavam na frente de tratores e caminhões para evitar o desmatamento. Assim, procuravam garantir a conservação do ambiente como forma de manter seu sustento. A floresta de pé gera renda para várias famílias de extrativistas. A floresta derrubada, transformada em pasto, gera desemprego para muita gente e renda apenas para o pecuarista.

Em 1989, a área se transformou no Projeto de Assentamento Agroextrativista Chico Mendes (PAE Chico Mendes), administrado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). O Cachoeira é um dos seringais que integram o PAE.

Considerado líder de um movimento de resistência pacífica, Chico foi assassinado em dezembro de 1988. A partir daí seu nome ganhou cada vez mais notoriedade. Xapuri começou a receber visitantes de todas as partes do mundo. As pessoas queriam conhecer a história do seringueiro que se envolveu, lutou e perdeu a vida defendendo uma causa maior. Xapuri atrai cada vez mais turistas: jornalistas, pesquisadores, ativistas ambientais ou pessoas querendo conhecer as belezas da Amazônia. Dessa maneira, a pequena comunidade do Seringal Cachoeira foi se tornando, aos poucos, um destino turístico.

O turismo na floresta

Quando os primeiros grupos de turistas começaram a aparecer no seringal, a comunidade não dispunha de infraestrutura para hospedagem e alimentação; os moradores acabavam por receber os visitantes em suas casas. “As pessoas se adequavam ao que a gente podia oferecer. Até hoje eu recebo um monte de gente na minha casa”, conta o líder comunitário e guia turístico Nilson Mendes.

Nilson: turismo gera educação ambiental Foto: Fabiana Chaves

Nilson: turismo gera educação ambiental
(Foto Fabiana Chaves)

Por perceber que a demanda turística crescia, a Associação de Moradores e Produtores do PAE Chico Mendes decidiu criar um redário para receber os turistas. O redário consistia em um galpão com várias redes atadas. “Mas com o tempo, o redário também se tornou insuficiente e os visitantes reclamavam da falta de conforto. Depois de passar o dia todo andando, explorando a região, não conseguiam dormir direito”, afirma Nilson.

A ideia de construir uma pousada no seringal surgiu em uma das reuniões da associação de moradores. Fruto de parceria da comunidade com os governos federal e estadual, por meio do INCRA, a pousada Seringal Cachoeira foi inaugurada em 2008 dentro do PAE Chico Mendes, a 33 km da sede do município de Xapuri. É um empreendimento comunitário gerenciado pela associação.

A construção começou em 2006, com um investimento de R$ 400 mil e mão de obra local. “Tudo foi resolvido aos poucos dentro das reuniões do sindicato [associação]. As pessoas selecionadas para trabalhar na pousada receberam treinamento em hotelaria e turismo e aprenderam um pouco sobre sistemas de gestão. Tudo por conta das parcerias”, conta a presidente da associação de moradores, Nazaré Vieira Mendes.

A pousada funciona como uma cooperativa, bem como o desenvolvimento das várias atividades ligadas ao turismo, como o arborismo, a realização de trilhas e passeios ciclísticos. A administração do empreendimento é de responsabilidade de Fernanda Mendes, recém-formada em turismo. “Posso dizer que sou realizada profissionalmente. Aqui eu trabalho na minha área e tenho a oportunidade de ajudar toda a comunidade”, diz.

Fernanda é funcionária da secretaria de turismo estadual, que paga seu salário. A renda dos outros funcionários provém da própria pousada. Além disso, dez por cento do lucro total é investido na infraestrutura geral da comunidade. “Desse jeito todos se envolvem no bom andamento dos serviços turísticos”, relata a administradora. Durante a seca (junho a setembro), a pousada recebe mais visitantes. Fernanda afirma que os turistas preferem essa época para aproveitar melhor as opções de lazer.

Muita gente se beneficia com as novas demandas do turismo. Além dos benefícios diretos, são gerados benefícios indiretos. Uma parte da população trabalha na própria pousada, com salário fixo, desenvolvendo serviços ligados à hospedagem, manutenção, recepção e alimentação. Outros produzem e vendem alimentos para o restaurante da pousada, prestam serviços de guia turístico ou trabalham no circuito de arborismo.

Antes de trabalhar na pousada, Sebastiana da Silva cuidava dos filhos e ajudava seu marido no roçado. Hoje, trabalha como cozinheira: “essa oportunidade foi muito boa, pois posso ajudar no orçamento familiar, comprar alguma coisa que os filhos pedem e que antes o dinheiro não dava. Melhorou toda comunidade por conta de todo mundo ter mais renda, de um jeito ou de outro. As pessoas não precisam mais sair daqui pra trabalhar. E como não é todo dia que tem movimento aqui no restaurante, dá até pra continuar fazendo outros trabalhos, como roçado, coleta de castanha”, explica.

Conhecendo a pousada

Construída às margens de um lago, com decoração rústica e clima aconchegante, a pousada conta com 32 leitos, divididos em 3 chalés e 2 quartos coletivos, chamados de “belichários”. Dois chalés são para casal e o terceiro chalé tem acomodação para família de até 4 pessoas. Os belichários são divididos por gênero e cada um possui acomodação para 12 pessoas.

Na pousada, o turista pode conhecer um pouco mais sobre a história do Seringal Cachoeira; contratar um guia para realizar trilhas na floresta; alugar uma bicicleta e fazer um passeio ciclístico pela região; participar do circuito de aventura, com rapel, arborismo e tirolesa; saborear um tambaqui assado ou um filé ao molho de castanha, acompanhados por sucos de frutas da Amazônia, como cupuaçu, graviola, acerola, caju e cajá.

Restaurante serve pratos típicos da culinária amazônica Foto: Glauco Capper

Restaurante: pratos da culinária amazônica
(Foto Glauco Capper)

Todo o serviço prima pelo respeito ao ambiente e a conscientização ecológica. “O turismo ideal é aquele que gera educação ambiental, por isso fico muito feliz quando universitários e pesquisadores vêm conhecer a região”, conta Nilson Mendes.

Segundo Fernanda, a pousada tem recebido grupos grandes que, na maioria das vezes, lotam as instalações. Por outro lado, também há bastante interesse de casais devido ao clima aconchegante e tranquilo. “Já existe um projeto de ampliação. Acredito que quanto mais pessoas conhecerem a região, maior será a conscientização sobre a necessidade da preservação da floresta. Ela não é só bonitinha, é fonte de trabalho e renda”, afirma.

Para visitar a pousada o ideal é ligar com antecedência, reservar um chalé ou vaga no belichário e agendar os serviços de lazer que deseja contratar. A pousada conta também com serviço day use, no qual o turista usufrui de toda a infraestrutura durante o dia, mas sem precisar pagar por um chalé. O telefone de contato é (68) 9956-0780.

Texto final: Fabiana Chaves

Edição: Fabiana Chaves e Maurício Bittencourt

Reportagem: Eva Ferreira e Cínthia Michelli

Alternativa e jornalística (editorial)

Equipe da Anam chega ao Seringal Cachoeira para série de reportagens / Foto: Jeniffer Bruschi

Equipe da ANAM chega a Xapuri (AC)

A Agência Ambiental de Notícias da Amazônia (ANAM) é um meio de comunicação jornalístico alternativo sobre a questão ambiental amazônica. Trata-se de uma agência experimental de notícias baseada na infraestrutura do curso de jornalismo da Universidade Federal do Acre (UFAC), em Rio Branco, capital do estado amazônico brasileiro do Acre. O principal objetivo é levantar informação independente que contribua para o debate sobre a questão ambiental amazônica (QAA). Somos alternativos no modelo econômico: optamos por viabilizar as atividades jornalísticas com recursos financeiros da universidade pública, a fim de praticar o jornalismo de interesse público.

Considera-se a floresta amazônica patrimônio da população amazônica, o que leva a uma abordagem política da QAA. Interpretamos a questão ambiental amazônica, sobretudo, por seus vieses político e socioeconômico, em detrimento do ponto de vista ecológico. A tensão que emana desse tema diz respeito a interesses econômico-políticos e à apropriação da natureza amazônica: quem deve se apropriar da riqueza da floresta?

Visamos o debate sobre alternativas de desenvolvimento. Desta forma, o diferencial das pautas da ANAM recai sobre propostas ambiental e socialmente sustentáveis dos povos tradicionais da floresta, procurando trazer à cidade amazônica e à sociedade global os conhecimentos da população da mata. Esse conhecimento, historicamente calado, vem à tona para inspirar propostas alternativas de convivência com o bioma amazônico. Acredita-se na possibilidade de um desenvolvimento sustentável e socialmente justo, assim como ocorre nas comunidades tradicionais amazônicas, onde se convive com a floresta. Todos os outros agentes do desenvolvimento também são ouvidos, independentemente de suas opiniões sobre a QAA: instituições governamentais e empresariais, movimentos sociais etc.

A palavra desenvolvimento aparecerá aqui com a naturalidade de quem utiliza a eletricidade, a internet, a universidade e o jornalismo como forma de organizar o discurso. Seria incoerente criticar todos os tipos de desenvolvimento e, ao mesmo tempo, aplicar as lógicas científica e jornalística neste blog gratuito. Utilizamos o jornalismo e a internet para usufruir o lado positivo e democrático da sociedade contemporânea, uma grande onda libertária que possibilita a livre expressão e a diversidade cultural.

No aspecto jornalístico, acredita-se no jornalismo como fomentador do debate democrático sobre a questão ambiental amazônica. Propomos uma prática na base do sujeito-sujeito, com um jornalista disposto à interação social criadora, em detrimento da proposta sujeito-objeto, na qual se vê o jornalista como sujeito e a pauta como objeto.

Coerente com esse aspecto, é preciso estar na Amazônia, um dos principais diferenciais deste meio de comunicação alternativo. Assim, a ANAM se configura institucionalmente como um projeto de extensão da UFAC e nossos repórteres são alunos do curso de jornalismo, professores e funcionários da universidade. De acordo com a liberdade da internet, também cabem neste espaço artigos assinados por especialistas e notícias de provedores gratuitos de informação.

A proposta integra pesquisa doutorado que constatou: (a) a falência do jornalismo de interesse público na mídia de massa e (b) a necessidade da construção solidária de uma nova racionalidade para conviver com o meio ambiente amazônico.

Convidamos vocês ao debate democrático sobre a questão ambiental amazônica. Sejam bem-vindos!

Maurício Bittencourt
Editor e coordenador

Fabiana Nogueira Chaves
Editora

Equipe da ANAM

(Foto: Jeniffer Bruschi)