No tempo da luta

Primeira professora do Seringal Cachoeira deu aula voluntariamente durante 2 anos

Antônia: “por amor à comunidade” (Foto Fabiana Chaves)

Antônia: “por amor à comunidade”
(Foto Fabiana Chaves)

A proposta de ouvir histórias de vida de moradores ou ex-moradores do Seringal Cachoeira busca revelar escolhas e princípios de personagens que participaram de momentos históricos na Amazônia. Com técnicas jornalísticas e de História Oral, a entrevista abaixo foi transcrita para reproduzir não somente fatos, mas também a linguagem e a forma narrativa, com as expressões e características discursivas peculiares da entrevistada. Neste fragmento, aparece Antônia Vieira, 64 anos, primeira professora do Seringal Cachoeira, que nos impressionou por seu carinho em relação à comunidade “do Cachoeira” e por sua coragem frente aos empates. Entrevistamos a professora Antônia, no município de Xapuri (AC), no dia 20 de outubro de 2012.

Antônia Vieira – Eu nasci no Iaco [rio do estado do Acre, afluente do Purus]. Fui batizada em Sena Madureira (AC). Aí com sete anos eu cheguei aqui em Xapuri e estudei as quatro primeiras séries. No final dos meus quatorze anos eu fui passar as férias na casa do meu pai, lá no Cachoeira e arranjei um rapaz. Eu cheguei no Cachoeira com 15 anos de idade, me casei, formei família e trabalhava na roça. E aí surgiu um trabalho de professora. Porque não tinha professor lá na época. Através de Chico Mendes, Raimundo de Barros, eles fizeram reunião pra criar uma escola. Aí o pessoal: “ah, bora escolher a Antônia, porque nós precisamos de alguém pra dar aula”. Que lá no Cachoeira ninguém sabia nem ler nem escrever. Não tinha escola. Na época da reunião, eu até estava com malária, mas mesmo assim, colocaram meu nome lá, aí eu aceitei. Aí ficou. Fiquei fazendo cursos do Projeto Seringueiro e comecei a trabalhar, só por amor à comunidade mesmo, que eu não tinha contrato não.

Agência Ambiental de Notícias da Amazônia (Anam) A senhora escolheu um local para dar aula?

Antônia Vieira – Foi. Escolhi um local. Era longe. Ensinava os alunos analfabetos. Na época, pegava na mão pra ensinar, né, hoje não se pega mais. Aí fazia os cursos e dava aula, mas sem ganhar nada.

Anam E continuou trabalhando na roça depois que começou a dar aulas?

Antônia Vieira – Eu trabalhava na roça no sábado. Ajudava meu marido. Aí, de segunda a sexta eu trabalhava nas aulas. Trabalhei por uns dois anos sem ganhar nada; só depois que eu fui contratada.

Anam Pela prefeitura?

Antônia Vieira – Pelo governo. Aí melhorou um pouco né (risos), foi melhorando… Dava aula e em julho eu vinha estudar pelo Projeto Seringueiro, vinha fazer curso. Aí ia pra lá, trabalhava. Em dezembro, janeiro e fevereiro eu vinha estudar. Aí passei uns cinco anos assim. Fiz o primeiro grau parcelado assim. Em uns quatro anos eu fiz o primeiro e o segundo graus. Aí eu completei meu segundo grau e trabalhava na escola da comunidade. Trabalhava na escola e era merendeira, professora e servente, comboieira. Ainda tirava lenha pra fazer a merenda da semana toda, né. Todo sábado eu fazia isso. Era muito difícil. Era na lenha mesmo, era no fogão de lenha. Eu pegava muito do meu trocadinho pra pagar condução pra levar a merenda. Na época tinha um prefeito que não ajudava. Uma vez nós precisamos de cinco pessoas pra levar a merenda, e teve uma briga desse prefeito com cinco professores, um deles era o [ex-governador] Binho. O Binho na época era o meu coordenador e o prefeito era o Wanderley Viana e teve uma briga com o Binho. Era difícil… Mas aí… Bem… Aí eu continuei dando aula.

Anam Depois estudou pedagogia…

Antônia Vieira – Depois de muito tempo eu fiz pedagogia sim e fiz minha pós-graduação em Educação Ambiental. É o que o Genivan também está fazendo, o meu neto.

Antônia: pós-graduação em educação ambiental (Foto Fabiana Chaves)

Antônia: pós em educação ambiental
(Foto Fabiana Chaves)

Anam Consegue fazer trabalho ambiental hoje em dia?

Antônia Vieira – Consigo. Todo evento que tem eu estou lá com o meu cartaz. A diretora até diz “a senhora é uma poetisa”. E nas aulas também.

Anam E a pós-graduação, acabou quando?

Antônia Vieira – Em… 90… 92, parece.

Anam – A senhora ainda é professora?

Antônia Vieira – É, trabalho de manhã agora, dando aula pra adulto.

A militante

Anam Ouvimos dizer que a senhora além de professora da comunidade, também participou dos empates.

Antônia Vieira – Participei. Chico Mendes me convidou pra ir a um empate no Nova Esperança. Eu estava numa reunião do evangelho quando ele mandou um bilhete pra eu ir pra esse empate. E eu… Tive que ir, porque na época eu era delegada do sindicato e não podia recuar, né. Na época que eu fui escolhida pra delegada, teve um senhor que disse “devemos escolher a pessoa que, na hora do ‘pega pra capar’, não se esconda por detrás dos tocos”. Então eu me lembrei dessa frase e disse: “eu tenho que ir pro empate”. Aí fui.

Anam Como foi esse empate?

Antônia Vieira – Sei que fui chegando lá e já era de noite. Quando foi de manhã reunimos todos os companheiros e fomos para o empate. Aí, lá na fazenda, na estrada do Nova Esperança já tinha gente esperando, e nós fomos presos. Eram 80 pessoas, e foram todas presas, porque na hora que nós dissemos que íamos enfrentar mesmo, eles disseram: “só o Raimundo Barros… E as outras pessoas podem ir embora. Esses aqui que são os ditadores. Pode ir embora que esses aqui que vão presos”. Na hora que eles disseram isso nós enfrentamos eles. Tinha mulher com criança… Eles colocaram as metralhadoras tudo em cima de nós, pra atirar mesmo. Aí, nós demos as mãos e começamos a cantar o hino nacional… Aí eles baixaram as armas. Aí disseram “mas não tem jeito não, vão presos”. Fomos todos presos. Um conseguiu correr. Quando ele correu botaram a arma nele, aí dissemos “não, que ele é mouco, nem adianta gritar… Que ele é mouco”. Esse que escapou, no outro dia levou mais 40. Então aí concluíram 112 seringueiros presos. Fomos 112. Daí começou a luta, né, a cassação da cabeça do Chico. Quando mataram o Chico, aí teve o negócio das reservas extrativistas, mas aí eu já não tava mais lá, eu fiquei viúva e vim morar aqui. Eu estava sempre acompanhando as lutas do pessoal da reserva, foi um sufoco mesmo pra conseguir isso aí. É esforçado, né, pra gente reunir o povo que não é muito consciente, pra conseguir a reserva e cuidar do meio ambiente, porque antes, o pessoal achava que o meio ambiente era o Chico. Vê como é que tá o nosso planeta hoje, né?

Anam E a ideia do hino? De onde surgiu a ideia de vocês cantarem o hino como forma de protesto, de defesa?

Antônia Vieira – Assim que eles colocaram a metralhadora em cima da gente, a gente começou a cantar. Surgiu assim do nada. Rapidinho, assim. Foi o melhor meio que a gente encontrou para se defender, porque se eles não respeitassem cantando o hino nacional, né…

Antônia: hino nacional para enfrentar polícia (Foto Fabiana Chaves)

Antônia: hino nacional durante o empate
(Foto Fabiana Chaves)

Anam Como foi essa ameaça com armas?

Antônia Vieira – Eu estava preparada mesmo. Eu tenho uma filha que, na época, tinha 11 anos. Eu falei pra ela “minha filha, você fique aqui na casa do Senhor Nogueira, porque nós vamos enfrentar a polícia e eu não sei… Eu vou porque toda luta eu tenho que ir e você é novinha. Se eu morrer seu pai vem lhe buscar…” Mas aí ela disse “não, se a mãe morrer eu morro também.”

Anam Seu marido não foi aos empates?

Antônia Vieira – O meu marido não. Eu não deixava ir porque ele tinha epilepsia e se ele tivesse um ataque e desse um grito a gente podia ser descoberto. Ele não ia nem nos empates que tinha no Cachoeira.

Anam Qual era a crença que te movia para lutar contra a injustiça? De onde surgia essa coragem?

Antônia Vieira – Tinha gente que estava lá até tomando maracujina (risos). O jeito foi fazer empates pra não deixar ninguém tomar nossa terra. Isso durou muito tempo.

Eu tinha a minha família lá, desde os 15 anos que eu me casei e fui morar lá, e o meu objetivo era continuar a morar lá. Como hoje nós ganhamos o Cachoeira eu moro aqui [Xapuri], mas eu sou baluarte de lá. Sempre eu estou lá nos eventos, participando de tudo. Eu sempre tento ajudar da melhor maneira possível, e hoje você vê: todos os meus filhos moram lá. Só tem um, que é o motorista da prefeitura. Mas os outros todos moram lá.

Eu não queria sair de lá, mas aí eu fiquei viúva e arranjei um outro casamento, os meninos não queriam aceitar né, aí eu construí aqui na cidade. Ficou tudo bem, mas eu ainda continuo na luta, ainda sou filiada do sindicato dos trabalhadores e dos professores também. Sou filiada em dois sindicatos. E a luta continua.

Anam Como é que vocês perceberam que entrada daqueles fazendeiros seria um problema tão grande?

Antônia Vieira – É porque…  Vocês sabem aquele ditado? “Não deixe o tatu entrar, por que se o tatu entrar no buraco é difícil ele sair.” O fazendeiro também, se ele entrar é difícil ele sair, se ele tivesse entrado no Cachoeira, hoje não teria mais ninguém de nós lá. Os vizinhos dele que tivessem medo, ele ia dando jeito e comprando as colocações devagarzinho de um a um, não é? Eles estariam com o Cachoeira quase todo. E então o negócio foi enfrentar para que eles não entrassem, por que se eles entrassem era difícil de colocar para fora.

Anam Hoje um enfrentamento desses seria difícil de fazer?

Antônia Vieira – Seria sim. Aqueles que tinham menos coragem a gente tinha que enfrentar e dar coragem para eles, dizia “olha, você vai tem que ter coragem porque nós temos que trabalhar em prol disso aqui, porque se nós perdermos isso aqui, como é que vocês vão viver?” Eu ainda tinha uma profissão, mas eu pensava em quem não tinha. Tem que pensar nos outros.

Anam Na época dos empates qual era a sua idade?

Antônia Vieira – Na época…. Uns 40. Nada, eu ainda não tinha 40 não. Quando eu fiquei viúva eu tinha 42. Eu tinha trinta e poucos anos nessa época. Era pau de dá em doido, eu caçava, eu fazia tudo (risos). Meu marido era doente e eu tinha que ajudar.

Anam Caçava? Com espingarda e tudo?

Antônia Vieira – Era! Com espingarda. Eu cortava seringa, eu comprei esse terreninho aqui a custa de uma borracha que eu vendi. Eu vendi para o seu Manoel Ribeiro, o homem que a primeira escolinha era na colocação dele. Ele comprava a borracha, aí eu fiz e vendi pra ele.

Mulher (Foto Fabiana Chaves)

Antônia: coragem na luta pela terra
(Foto Fabiana Chaves)

Anam Qual o resultado dos empates? O povo do Cachoeira foi vitorioso?

Antônia Vieira – Deu vitória. Foi bem difícil, mas foi muita vitória. Hoje nós temos um lugarzinho: as terras de lá, nosso lugar, tudo mundo em paz e trabalhando. Agora a gente luta para que esse pessoal se conscientize mais sobre o ambiente.

Anam Qual a sua opinião sobre a geração mais jovem?

Antônia Vieira – Pois é, os mais jovens precisam se unir na batalha, na luta sobre esse negócio das reservas lá e tudo. Mesmo trabalhando com o manejo, às vezes, ainda tem manejador que tira madeira clandestina. A Naza [atual presidente do Sindicato do Seringal Cachoeira] está lutando muito contra isso. Já fomos até para Rio Branco debater sobre isso.

Anam Após o assassinato do Chico Mendes a luta se enfraqueceu?

Antônia Vieira – Numa parte ela fortaleceu, em outra parte eu vi fracasso, porque muita gente que era do lado dele [Chico Mendes] só se beneficiou financeiramente. Porque se muita gente que era do lado dele tivesse continuado, a própria esposa dele tivesse continuado, a luta estava sendo melhor. Mas, a gente vê que a própria família, muitos deles são contra.

Anam Como foi a participação das mulheres? Havia muitas mulheres com vocês lá?

Antônia Vieira – Na época tinha! Na época as mulheres eram animadas, hoje em dia eu não sei o que esta acontecendo que as mulheres não estão se unindo mais. De primeiro a gente fazia encontro de mulheres, fomos para Rio Branco e tinha o movimento das mulheres, agora as mulheres parecem que não estão querendo muito mais se unir. Acho que é falta do incentivo de uma pessoa.

Anam Um líder?

Antônia Vieira – É. Um líder de frente pra organizar. Tem a Naza, mas ela tem tanta coisa para fazer que não sabe em quantas se vira.

Anam  Hoje, qual o seu sentimento sobre a luta do Seringal Cachoeira?

Antônia Vieira – Eu me sinto muito feliz e honrada, porque eu tinha uma liderança forte lá. Quando eu saí de lá os vizinhos ficaram reclamando, chorando, porque eu saí, né. Mas eu tinha que sair. Quando eu trabalhava lá, eu trabalhava forte, ajudava em tudo: eu era monitora, eu era delegada do sindicato, participava dos empates, era professora, eu era tudo… Pau pra toda obra (risos).

O amor por Chico

Anam A senhora teve muito contato com Chico Mendes?

Antônia Vieira Tive sim. Ele tinha 19 anos quando eu cheguei lá. Eu tinha 15. Tivemos um namorico [pausa]. Ele mandou um bilhete para mim perguntando se eu tinha coragem de fugir com ele no dia em que fosse casar, aí eu disse que não! (risos)

Anam Então quer dizer que no dia do casório ele queria te roubar (risos)?

Antônia Vieira – Queria sim, mas eu disse que não ia dar…

Anam E a senhora gostava do Chico?

Antônia Vieira – [D. Antônia pensa, se “esconde” atrás de bolsinha que tinha nas mãos] O amor da minha vida! [Emoção] Um amor de infância, quase. Eu casei nova…

Anam Quantos anos viveu com seu marido?

Antônia Vieira – Vinte e sete anos.

Anam O pessoal do Seringal Cachoeira sabe dessa história?

Antônia Vieira – Sabe! Sabe… (risos). O Chico estava noivo de uma moça há sete anos, por nome Maria, e aí quando eu fiquei viúva, ele disse que ainda tinha esperança, que se eu quisesse ele, que ele gostaria de casar comigo. Aí eu disse que não, que ele podia ir ser feliz. Aí ele foi…  Ele também tinha uma namorada na estrada, na estrada velha, que é essa que ele casou com ela depois de um tempo. E deixou a pobre da Maria chupando dedo. Essa da estrada foi a primeira esposa dele. Aí depois ele casou com a Ilzamar. Mas ela não gostava muito de mim não. (risos)

Se eu tivesse casado com ele, eu ia ser da luta junto com ele. Do jeito que ele lutava, eu lutava também. E ela não era da luta, ela não era do lado dele.  Até quiseram levar ele para os Estados Unidos depois, porque ele estava ameaçado de morte, mas ele disse que morria pelo povo e não foi pra lá. Eu depois fiquei viúva de novo, eu ia ficar viúva sempre, não tinha jeito.

Eu tenho medo de esse povo, essa família que matou o Chico entrar no poder aqui em Xapuri de novo. Qualquer briguinha de bar eles aproveitam pra matar algum que já estavam querendo matar. A luta não pode parar, as pessoas estão se esquecendo disso.

Texto final: Fabiana Chaves

Edição: Fabiana Chaves e Maurício Bittencourt

Reportagem: Cecília Jácome e Cristina Souza

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