Sociedade X Rio

Cidade em oposição à natureza transforma fenômeno natural em problema social

Moradias ocupam área de alagação do Rio Acre (Foto Agência de Notícias do Acre - 2012)

Alagação em Rio Branco (AC) – 2012
(Foto Agência de Notícias do Acre)

Em 2012, o Estado do Acre sofreu a maior enchente de sua história: cerca de cem mil pessoas foram atingidas diretamente. O nível do Rio Acre chegou a 17,62m. O município de Brasiléia foi o mais afetado: a cidade teve 95% de sua área submersa e passou mais de 24 horas sem comunicação e energia elétrica. Apesar de trágico, o problema é totalmente previsível e pode ser evitado.

Em todo o mundo, a ocupação das cidades se inicia a partir dos rios. Na Amazônia não seria diferente. Os seringais que deram origem às cidades do Acre se situavam na beira, para escoar a borracha e facilitar a entrada de mantimentos. Na década de 1970, essas aglomerações urbanas incharam desordenadamente, devido a conflitos no campo. Em Rio Branco, muita gente ocupou desvalorizados terrenos alagadiços perto do Rio Acre. São locais que fazem parte do território do rio, de acordo com o regime normal de enchentes e vazantes.

Depois de décadas, as sucessivas enchentes levaram o poder público a propor a remoção de algumas famílias. No entanto, curiosamente, muitos não querem abandonar as áreas de risco. A equipe da ANAM entrevistou vários desses moradores em Rio Branco para saber por quê.

Nível dos rios amazônicos varia... (Foto Fabiana Chaves)

Variação no nível dos rios é natural…
(Foto Fabiana Chaves)

Neusa Batista dos Santos, 78, mora no bairro Taquari há 22 anos. Veio de Xapuri “em busca de um lugar na cidade, pois a vida no seringal estava muito difícil e encontrei aqui um lugar barato, na beira do rio, que é um pouco parecido com o lugar onde eu morava. Da rua até a beira tudo é meu, com isso posso criar porco e galinha sem perturbar ninguém. Esse barulho do motor das embarcações me faz lembrar o meu tempo de seringal.”

... Na Amazônia - centro de Rio Branco, 2012 (Foto Fabiana Chaves)

… Na Amazônia – centro de Rio Branco, 2012
(Foto Fabiana Chaves)

Neusa tenta reproduzir o ambiente no qual vivia em Xapuri. Os vizinhos da cidade, em sua maioria, são parentes que foram chegando aos poucos e formando suas famílias.

Mas outros fatores também evitam que essas famílias se mudem para as casas doadas pelo governo. Elas questionam se as novas residências possuem a mesma infraestrutura das atuais. Em Rio Branco, por exemplo, muitas áreas de risco situam-se no centro da cidade, o que torna esses locais atraentes.

“Não vou sair de um lugar que tem padaria, açougue e farmácia perto para ir para um lugar que não sei nem onde é. Aqui eu vou ao centro da cidade a pé, de muletas ou de ônibus. Quando quero comprar um pão, uma carne ou um quilo de açúcar é só atravessar a rua que encontro tudo aqui perto. As mães têm com quem deixar seus filhos. O governo quer mandar a gente para um lugar que nem parada de ônibus tem”, conta Maria Silvestre Pinho, de 53 anos. Maria veio da pequenina Santa Rosa do Purus, cidade mais remota do estado do Acre, e mora há 22 anos no bairro Taquari.

Existem também os casos mais extremos, daqueles que não tiveram escolha e viram suas casas sendo arrastadas pelas enchentes. Essas pessoas estão vivendo em apartamentos de um ou dois cômodos espalhados pelos bairros de Rio Branco. São os “hóspedes” de um programa governamental que paga o aluguel das famílias até 2014, ano em que está prevista a remoção para novas residências.

Sheila Sebastiana Ramirez, 44, conta que fez um empréstimo e comprou uma casa pequena no Bairro Seis de Agosto. Perdeu tudo na alagação de 2012 e hoje mora num apartamento de dois cômodos com mais quatro pessoas. “Independente de ser casa conjugada, terreno reduzido ou com pouca privacidade, eu quero é sair do sufoco, eu quero é ganhar minha casa”, diz.

Desenvolvimento insustentável agrava alagações

O pesquisador Evandro Ferreira, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa-AC) e do Parque Zoobotânico da Universidade Federal do Acre, aponta que as alagações se agravam devido ao desenvolvimento predatório que extermina as matas ciliares (matas situadas à beira dos rios e igarapés).

“A destruição das matas ciliares no Brasil tem ocorrido em razão do avanço das atividades agropecuárias, da urbanização e da construção de hidrelétricas, para citar apenas alguns fatores”, afirma o pesquisador. Ferreira diz que isso possibilita o aumento da produção agrícola, a expansão das cidades e a disponibilização de energia, mas alerta que a sociedade brasileira paga alto preço por esse crescimento.

Bairros inteiros situam-se em área de risco (Imagem e legenda: Evandro Ferreira)

Ruas inteiras situam-se em área de risco
(Imagem e legendas: Evandro Ferreira)

As matas ciliares desempenham importante papel hidrológico e ecológico. Sem a mata ciliar, a água da chuva escoa mais rápido e não penetra no solo para abastecer os lençóis freáticos. Isso prejudica o acesso à água para a população que depende de poços d’água. Afeta também as nascentes, córregos e, em última instância, os grandes cursos de água que abastecem as cidades.

A vegetação funciona ainda como uma proteção natural contra o assoreamento, pois, sem ela, a água da chuva carrega mais sedimentos para os rios. Com o tempo, o rio fica cada vez mais raso no período da seca. No período das águas, a ausência de mata ciliar facilita os transbordamentos, mesmo que a quantidade anual de chuvas não seja maior do que o normal. É o que ocorre no Rio Acre: de janeiro a março, alagação; de agosto a outubro, ameaça de falta d’água.

Alagação anual inunda floresta amazônica (Foto Fabiana Chaves)

Mata ciliar preservada na beira do Rio Acre
(Foto Fabiana Chaves)

 “A crise de água que os habitantes de Rio Branco vivem de forma recorrente durante as estiagens é reflexo direto da destruição da mata ciliar do Rio Acre”, explica Ferreira.

Estudos científicos realizados pelo Inpa-AC mostram que ao longo de todo o curso do Rio Acre, desde o Peru até Boca do Acre (AM), 28% das matas ciliares já foram eliminadas. No Estado do Acre, 32% das matas ciliares já foram destruídas. Em Rio Branco, a destruição é de 40% e, no município de Epitaciolândia (AC), já ultrapassou os 60%. As matas ciliares também funcionam como um filtro natural para a água que chega aos cursos de água, tornando-a mais limpa, o que favorece a fauna e flora aquática e facilita o tratamento para consumo humano.

Texto final: Fabiana Chaves e Maurício Bittencourt

Reportagem: Myrla Rodrigues e José Franco

Agradecimento especial ao pesquisador Evandro Ferreira, que cedeu valioso material de pesquisa sobre o Rio Acre (http://ambienteacreano.blogspot.com.br/)

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